Flerte & Assedio
Glória Maria nos deixou, e com ela se vai parte da história do jornalismo brasileiro. Ao observar o grande número de matérias sobre a morte da jornalista que viralizaram nas redes sociais, percebi que a era da viralização também já era, não passa de um cyberartefato cultural da época em que ainda tínhamos cybercultura. É incorreto, portanto, dizer que algo viralizou. Quando algo se espalha para um grande número de pessoas, o correto hoje é dizer que aquilo algoritmizou.
Tudo é autorizado pelo algoritmo, selecionado pelo algoritmo, impulsionado pelo algoritmo ou mesmo criado pelo algoritmo, e só se propaga se for do interesse do algoritmo, o Big Brodão invisível em uma sala de edição virtual que decide qual vai ser a sua programação. Por razões que não posso escrutinar, quis o Brodão que eu topasse com a matéria¹ da Revista Forum, que fala sobre o dia em que Mick Jagger flertou com Glória Maria durante entrevista.
Mick está bem passadinho nessa entrevista, que deu quando veio gravar clipe no Brasil. Não só ele fica o tempo inteiro lançando olhares de fêmeo fatal para Glória, como ainda rouba um beijo no final. Imediatamente me perguntei, pela enésima vez, o que separa flerte do assédio. Se essa entrevista da Glória com o Jagger² é entendida como flerte, por que a de Bruna Lombardi com Bon Jovi³ é descrita como assédio?
Após pensar longamente sobre esse profundo dilema por cerca de alguns segundos, concluí, ainda que a contragosto, que só quem tem lugar de fala para discernir flerte de assédio é a mulher. Por exemplo: se a mulher sendo paquerada é uma pessoa pequena, medíocre, amarga, arrogante, narcisista, egocêntrica e incapaz de enxergar humanidade no outro, aí é assédio. Quando, então, a paquera é flerte? Ora, quando é flerte, aí é a Glória. Que outra Maria seria?
Há muitas mulheres da época da Glória que hoje parecem acometidas de amnésia, pois endossam discursos incompatíveis com o que viveram ou testemunharam. Eu sei o que o que essas Madonnas aprontaram no final do milênio passado, portanto também sei que manipulação e hipocrisia são os instrumentos que as dinossauras usam para se conectar à geração atual. Absolutamente sui generis, já que tais coisas são a marca do que hoje é belo, moral e atual.
Nem toda dinossaura é amnésica, é claro, e Glória Maria se manteve íntegra até o final. A jornalista é um registro histórico não só de que outro mundo é possível como outra pessoa é possível. É triste pensar que pessoas como ela não nascem mais, especialmente porque o quadro atual não ajuda. A Beth se foi, Erasmo Carlos se foi, o namorado da Xuxa se foi, Jô Soares se foi, e eu não estou me sentindo muito bem.
Essa piadinha infame eu roubei do Veríssimo, que provavelmente continua não se sentindo muito bem, mas não se foi ainda. Lembro que roubado não é achado, e quem perdeu foi playboyzado. E depois, se o Jagger pode roubar um beijo da Glória Maria, não vejo razão alguma pela qual não possa roubar um sorriso de qualquer um que sorria, então passa pra cá a risadinha.
"Essa coisa do politicamente correto é um porre. Eu não sou politicamente correta e não vou ser. Eu acho que politicamente correto é o caráter, a honestidade, é a sua capacidade de olhar para o outro." - Glória Maria