A Fantasia do Zezé
O Carnaval está chegando, e esse ano, novamente, a fantasia da moda é a de jumento. Sua popularidade é compreensível, visto que ela está alinhada com os valores e anseios intelectuais da cultura vigente, que incentiva as pessoas a repetir discursos que somente um asno falante seria capaz de reproduzir com fim de sinalizar virtude e conformidade tribal.
A tendência é problemática, pois fabrica vários dilemas filosóficos politicamente incorretos a serem solucionados. Seria o indivíduo desfilando no bloco dos jegues um jumento de fato ou estaria ele apenas fantasiado? Fantasiar-se de jumento é metafisicamente possível para um jumento ou só o que ele consegue com uma fantasia de jumento é ser tão jumento quanto um jumento sem fantasia? Pessoas que não são jumentos fantasiadas de jumento ofendem as diversas identidades e existências jumentas? Indivíduos que entendem que fantasia de jumento ofende as identidades e existências jumentas estariam defendendo seus próprios direitos ou os de terceiros?
Todos esses dilemas e mais outros que poderíamos identificar são bastante dilemáticos, mas o que podemos saber com certeza é que se proibirmos homens de usar fantasia de mulher no carnaval, Pabllo Vittar está automaticamente cancelado. Pablo é uma drag queen, que nada mais é do que um homem gay que se fantasia de mulher para fins artísticos. Em termos técnicos, poderíamos dizer, uma drag nada mais é do que um travesti. Não por acaso, por acaso essa é precisamente a definição de travesti no dicionário¹: "pessoa que se veste com roupas do sexo oposto, geralmente, em espetáculos teatrais ou para ter satisfação psicológica; por extensão, homossexual que se veste de mulher".
Em outras palavras, o ato de se fantasiar de mulher é uma identidade reconhecida, portanto declarar a prática ofensiva ofende diversas identidades e existências. Por extensão, concluímos com segurança que indivíduos que afirmam que travesti não é fantasia não precisam de fantasia para desfilar no carnaval devidamente paramentados de jumento.
Para alguns jumentos, entretanto, apenas ser jumento não é o suficiente. É preciso ser um jumento desonesto e afirmar que homens "cis" saem travestidos de mulher no carnaval para ridicularizar mulheres. A inserção do cis é jeguial, já que autoriza Thammy Miranda - um homem trans - a desfilar fantasiado de Gretchen para ridicularizar mulheres. A cena seria épica, embora inapropriada, o que a torna absolutamente apropriada para o carnaval, pelo menos os de antigamente, onde era possível a qualquer um soltar os bichinhos e ser e fazer o que se pensa impensável em outras épocas do ano.
Usarei aqui o princípio da caridade e vou entender que o objetivo da menção ao cis era afirmar, ainda que de forma jumenta, que homens cis heterossexuais não podem se fantasiar de mulher, pois estão automaticamente ofendendo identidades e existências. Essa afirmação, ainda que interpretada de forma caridosa, continua jumenta, pois está ferindo a identidade crossdresser, que segundo o Michaelis² é "pessoa que, sistemática ou eventualmente, cultiva o hábito de usar roupas do sexo oposto, por fetiche, geralmente sem conotação quanto à orientação sexual do praticante".
E já que o momento é próprio, é conveniente lembrar do imortal e mais famoso dilema filosófico dos carnavais, o da cabeleira do Zezé: será que ele é? Será que ele é bossa nova? Será que ele é Maomé? Parece que é transvinhado, mas isso eu não sei se ele é. A marchinha, na realidade, é mais politicamente correta do que os politicamente jumentos, já que conclui humildemente que não é capaz de concluir coisa alguma sobre Zezé e sua cabeluda cabeleira.
Para os politicamente jumentos, o indivíduo é o que declara, e sua identidade declarada deve ser respeitada. A regra é um dogma sacrossanto do pau oco, já que o politicamente jumento acredita possuir o direito de ignorar sua própria regra sagrada e decidir por decreto o que qualquer Zezé é o não é, o que ele está fazendo e com quais intenções, ainda que o Zezé declare solenemente o contrário. De todos os dilemas listados até aqui, esse é não só o mais dilemático como o mais jumento, mas, conforme já afirmei no início, é o que está na moda.
Neste carnaval, dilemize-se, mas com moderação.